Em uma sociedade que valoriza o desempenho, a performance e a produtividade, não há técnica ou ferramenta de autoconhecimento que não possa ser “sequestrada” para alimentar a competitividade e o mercado, pontos valorizados pelo sistema neoliberal praticado atualmente.
Uma dessas práticas é o mindfulness, uma meditação budista milenar, também chamada de atenção plena, que foi trazida para o Ocidente pelo monge vietnamita Thich Nhat Hanh na década de 1960. Não demorou muito para as ciências em geral começarem a estudar os efeitos do mindfulness sobre a qualidade de vida, o desempenho e a saúde física e mental das pessoas, promovendo, em muitos casos, a secularização da meditação.
Seus benefícios fizeram com que ela se popularizasse de forma secular no final da década de 1970, quando foi estruturado o primeiro programa de mindfulness pelo biólogo estadunidense Jon Kabat-Zinn.
Com o afastamento da religiosidade, ficou mais fácil o mindfulness cair nas graças do mundo corporativo como uma promessa de aumento de foco, da performance individual e da produtividade. E foram esses atributos, inclusive, que tornaram a prática queridinha entre a turma do Vale do Silício, onde atua grande parte das maiores mentes mundiais da tecnologia.
Marcelo Demarzo é um médico pós-graduado em Mindfulness e Saúde, pela Universidad de Zaragoza, na Espanha, com diversas especializações internacionais na área e fundador e coordenador do Centro Brasileiro de Mindfulness e Promoção da Saúde – Mente Aberta, braço acadêmico da Escola Paulista de Medicina da Unifesp, referência nacional e internacional nos programas e pesquisas sobre mindfulness.
Damarzo explica que essa prática meditativa não se trata de uma ferramenta de desenvolvimento de concentração, e sim de auto-observação.
“O mindfulness não é uma técnica concentrativa. Quando a prática entra no mainstream, o uso da técnica passa a ser mais liberal, no contexto do dia a dia, o que faz com que as pessoas usem dentro do contexto delas, como o filosófico. Mas há distorções no conceito e na prática, como é o caso do uso dessa meditação para se concentrar ou aumentar a produtividade para a pessoa trabalhar mais. O mindfulness serve para se auto-observar, para se autoconhecer, para clarificar o como você pensa e age. É um estado da mente com uma conexão muito grande com valores, algo ético pessoal, com as pessoas e com a natureza”, explica Damarzo.
Mesmo havendo distorções por parte dos praticantes, aparentemente a meditação parece ter vida própria e segue conectada com a sua essência. As corporações podem se “decepcionar” ao promoverem a prática dentro do ambiente corporativo visando apenas colaboradores mais funcionais. O mindfulness se tornou uma espécie de “Cavalo de Troia”, fazendo que com a mudança de consciência que a meditação pode promover gere questionamentos nesses funcionários, que, em vez de serem mais produtivos, pedem demissão.
“Eu acredito e vejo o mindfulness como esse Cavalo de Troia. Quando vendo treinamento para empresa eu aviso, deixo bem claro que não é uma técnica produtivista, é uma técnica que promove autoconhecimento e que pode acontecer das pessoas mudarem de emprego. Isso acontece, independente do propósito inicial da liderança.”
Mas, para Damarzo, que tem uma empresa que ministra mindfulness em ambientes corporativos, em ambos os casos (seja a permanência ou a demissão do funcionário), a companhia pode se beneficiar, uma vez que quem decide ficar melhora sua relação com o trabalho e as que não estão satisfeitas acabam saindo de uma situação desconfortável e vão em busca novas oportunidades, fazendo com que a empresa fique com colaboradores mais alinhados com as questões internas, como cultura, práticas e valores. E no contraponto, há uma pessoa que tomou consciência por meio do mindfulness da importância de perder o receio da mudança e de sair do automático, desenvolvendo a motivação necessária para buscar uma empresa em que ela tenha mais fit cultural.
Porém, mesmo com os possíveis pedidos de demissão, as corporações precisam estar prontas para esse “novo” colaborador que pode “nascer” a partir da inserção de uma prática de autoconhecimento em sua vida. E essa mudança pode não surpreender somente as empresas, mas também o colaborador que decidiu começar a praticar mindfulness para performar melhor, mas encontrou coisas muito mais valiosas pelo caminho.
Da performance ao bem-estar
Andrea Rodacki é uma executiva da área de tecnologia. Em 2018, a empresa onde Andrea trabalhava abriu um programa liderado por um polonês que trazia algumas práticas para a promoção do bem-estar em geral dos colaboradores de forma virtual. Entre essas ferramentas estava o mindfulness, que parecia perfeito para o que a executiva queria: performar.
“Não era só no trabalho que eu queria ir melhor. Sou nadadora. Fui federada. Na mesma época em que começou esse programa, eu estava com a intenção de voltar a competir. Eu trabalhava muito na área de vendas, com uma pressão por resultados que me deixava muito instável, mesmo realizando outras práticas, como o yoga. Comecei a praticar a meditação de maneira muito informal. Mas foi alguns anos depois que ao ir ao consultório de fisioterapia que vi um panfleto a respeito de um curso de oito semanas de mindfulness e decidi fazer”, conta Andrea.
Mas a experiência não foi tão fácil como a executiva chegou a pensar em algum momento. Ficar parada por 20 minutos diariamente foi algo que ela considerou “radical” em sua agitada rotina. E foi através do primeiro contato com a prática pelo programa corporativo e da iniciativa pessoal de realizar o curso atrás de performance que Andrea transformou sua vida. Realizou diversos cursos, se tornou instrutora de mindfulness e percebeu que a prática é muito mais do que uma ferramenta utilitarista para aumentar a produtividade.
Andrea não descarta completamente a performance, mas entendeu que a prática tem muito mais a oferecer. “Eu comecei pela performance. Claro que ainda tenho esse objetivo, mas o ponto é que o mindfulness melhora a sua vida como um todo. Fui me libertando de amarras que nem os 30 anos de terapia estavam dando conta. Às vezes, a gente fica muito preso nos círculos viciosos de nós mesmos.”
A executiva afirma que passou a treinar menos e nadar melhor, que as pressões no trabalho já não a desestabilizavam como antes e estabeleceu relações de trabalho mais saudáveis com seus colegas. Porém, sua transformação também foi sentida pela sua família, ponto que Andrea demonstra muito carinho. “Eu tinha muitas brigas com o meu pai, que é meu consultor financeiro. Quando passei a praticar o mindfulness, minha forma de lidar com ele mudou. Então um dia minha mãe me ligou querendo o telefone do professor de meditação, porque meu pai queria aprender. Ele disse assim: ‘Eu quero fazer porque realmente mais esse negócio aí melhora mesmo a pessoa…você está muito mais calma’”, relembra a executiva.
Essas mudanças estão ao alcance de todas as pessoas que se permitirem praticar o mindfulness com forte determinação, independente da motivação inicial. Mas se as empresas tiverem como meta o bem-estar do funcionário desde o início, os resultados podem ser ainda melhores e mais rápidos para todos os envolvidos e de forma muito mais consciente.
Lideranças altruístas
Empresas não são entidades amorfas, são ambientes onde se manifestam valores, cultura e ética construídos por pessoas. Portanto, quando se encontra uma liderança comprometida primeiramente com o bem-estar dos funcionários, a prática do mindfulness pode se potencializar e gerar transformações profundas não somente dentro das empresas, mas na sociedade em geral.
Carmem Silvia Guariente é secretária da Secretaria Municipal de Araçatuba (Interior de SP). Em um cargo de liderança, Guariente viu a chance de levar para dentro do funcionalismo público a prática do mindfulness depois que teve a oportunidade de participar de um evento de mindfulness promovido pelo médico Marcelo Demarzo.
“Fui ao encontro representando as entidades públicas das quais eu faço parte, o Conselho de Secretários Municipais de Saúde e o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde. Eu não conhecia nada sobre o assunto. Lá eu percebi o quanto a meditação é importante. Fiquei muito interessada em promover isso para os profissionais para que esses benefícios também pudessem chegar até a população, mas pensando, primeiramente, em aliviar a pressão desses diretores e assessores, que sempre se mostram em estado de sofrimento, principalmente depois da pandemia, que mesmo que tenha oficialmente acabado, a carga sobre os profissionais que trabalham com saúde continua”, conta Carmem.
A secretária destaca que as profissionais são maioria mulheres e que, além da demanda de trabalho, exercem jornadas de cuidado também com a família. Portanto, as queixas eram comuns.
“Eu vi no mindfulness, nessa atenção plena, uma forma de estimular uma frase que gosto muito: ‘A minha cabeça precisa estar onde meus pés estão’. Percebi que nem sempre o cansaço estava relacionado ao excesso de trabalho, mas sim no ato de pensar em tudo ao mesmo tempo que gerava uma sensação de insuficiência, de não dar conta das coisas. Fizemos uma proposta juntamente com uma universidade local e convidamos as lideranças que quisessem participar voluntariamente. O resultado foi além das expectativas. Consideram um presente. Contam, de forma emocionada, que já não estão sofrendo como antes. Conseguem se organizar por dentro e por fora, porque estão mais presentes, mais tranquilas, mais atenta. Isso tanto no trabalho quanto em casa”, diz.
Quem se sente privilegiada por ter atendido corporações que se mostram, por meio de suas lideranças, interessadas primeiramente na qualidade de vida dos colaboradores é Marina Neumann, fundadora da Xponent, uma consultoria que trabalha com o desenvolvimento de pessoas e, entre os programas oferecidos pela sua empresa, está o mindfulness.
“Eu tenho muita sorte de me conectar com as ‘empresas do bem’, que estão genuinamente preocupadas com o bem-estar das pessoas. Acredito que a meditação é uma das inúmeras práticas dentro de um programa mais amplo de saúde mental e emocional que as empresas podem oferecer. Mesmo bem-intencionadas, há empresas que ainda têm resistência para falar sobre burnout, por exemplo. Por isso vamos mais devagar, pelas beiradas, aproveitando os momentos do ano de maior destaque para esses temas, como Janeiro Branco e Setembro Amarelo. Depois da pandemia o tema ficou mais em evidência e sinto que práticas como a meditação perderam um pouco o caráter utilitarista dentro das empresas e se voltaram mais para a essência”, conta Neumann.
Mesmo diante de um cenário otimista em relação ao altruísmo por parte de algumas instituições, a empresária não nega a realidade. “Muitas vezes, a liderança está conectada com a promoção do bem-estar, mas ela precisa de recursos e, por isso, usa argumentos como performance e produtividade para justificar o investimento. Então, essas justificativas acabam tendo caráter muito mais burocrático do que prático”, explica.
Portanto, é possível dizer que a prática do mindfulness tem sido usada de forma distorcida em relação à sua essência e usada como ferramenta de manutenção do sistema liberal, mas também está evidente seu caráter transformador, que tem surpreendido as empresas que, em um primeiro momento, buscam aprimorar profissionalmente seus colaboradores. A secularização de práticas inicialmente espirituais de uma determinada filosofia ou religião tem suas vantagens em um mundo que ainda busca compreender o papel das religiões na sociedade moderna depois de uma história antiga e recente de obscuridade. Porém, o afastamento total da essência não parece ser uma opção quando se estabelece um compromisso genuíno com a prática.
O neoliberalismo ganhou mais uma vez? Talvez nem tanto.
Caroline Apple
Jornalista, palestrante, colunista e influenciadora digital especializada na produção e gestão de conteúdo digital e reportagens em diversas editorias, principalmente Direitos Humanos, políticas de drogas e causa indígena.
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