“No princípio, Deus criou o céu e a terra.”
Gênesis se tornou uma das passagens mais famosas da Bíblia provavelmente porque a criação, seja de uma obra, ideia ou universo, é combustível para o nosso fascínio. Vasculhamos a origem de nossos traumas na terapia e de nossos rostos em árvores genealógicas com um objetivo único: entender a matéria constituinte de nosso ser.
Ursula K. Le Guin, cânone da literatura americana, partiu da busca para a criação. Filha da psicóloga Theodora Kroeber e do Antropólogo Alfred Louis Kroeber, fundador do departamento de antropologia da universidade de Berkeley e amigo de Ishi, o último indígena americano criado sem contato com a cultura branca, Ursula cresceu com a lente colonizadora rachada. O que buscamos com tanto afinco hoje fez parte da vida da autora desde o nascimento, em 1929.
O privilégio empírico de enxergar a beleza na pluralidade foi a primeira pincelada em um painel gigantesco povoado por novas propostas de mundo. Através dos gêneros ficção científica e fantasia, discriminados no meio literário, Ursula propõe o exercício valioso do “e se fosse diferente” e aplica à vida dos marginalizados na sociedade.
Ursula dizia “meu trabalho não é escrever uma resposta final e entregá-la. Eu vejo meu trabalho como abrir portas ou abrir janelas”. A ficção científica, para a autora, não era um espaço para imaginar casas futurísticas ou a forma de locomoção de outros povos. Era um espaço de reflexão de contextos sociais. O primeiro passo para a construção de novos paradigmas.
De fato, um mundo jamais é um lugar finalizado. Assim como seres humanos estão em constante formação, o universo está em constante expansão, se transformando a cada nova fresta. Em Terramar, saga escrita na década de 60 sobre um jovem feiticeiro em uma escola de magia (soa familiar?), as raças sofisticadas eram as de pele escura, enquanto os com pele branca e cabelos loiros eram “selvagens”.
Em “A Mão Esquerda da Escuridão”, a autora cria Inverno, um mundo onde gêneros definidos não existem e, por isso, não costuram as normas sociais do lugar. Através do Kemmer, os habitantes desenvolvem órgãos sexuais femininos ou masculinos aleatoriamente. Ser mulher ou homem não é sina perpétua, é condição momentânea. Genly, emissário da terra enviado para construir uma ponte diplomática entre os planetas, precisa encarar os novos conceitos biológicos e, tentando entender a formação daquele lugar, descortina a forma preconceituosa como nós vivemos aqui.
A contestação, de forma indiscutível, fez parte da argamassa usada por Ursula na junção desses universos, mas isso não impediu críticas às narrativas. O movimento feminista questionou as aventuras e sociedades sempre lideradas por homens, colocando em cheque o título de ficção científica feminista atribuído pelo público. Assumidamente reativa no início, a autora fez, de novo, o impensável. Refletiu sobre os mundos formados em sua mente e admitiu que não conseguiu escapar de todos os estereótipos de gênero aos quais somos submetidos continuamente. Poderia ter sido um mea culpa real sobre a impossibilidade de perfeição, mas Ursula resolveu fazer melhor. Lançou mão da magia transformando a trilogia Terramar em uma saga.
O quarto livro, Tehanu, lançado dezessete anos depois do pseudo-fim, trouxe o arquipélago a partir do ponto de vista de uma mulher. A autora, em entrevista, disse que imaginar essa continuação lhe custou quase duas décadas porque o mundo precisou mudar para possibilitar a escrita. Ged virou um mago sem poderes, as injustiças saltaram às paginas com a voz dos oprimidos e a perfeição de Terramar caiu por terra ali, diante de todos. Ursula incendiou o mundo criado por ela mesma para materializar uma visão ainda mais próxima da igualdade.
Os deuses, ao longo de toda história, se assemelham muito aos autores: criam mundos, línguas, povos – e com a mesma facilidade os destroem com pragas e desgraça. Ursula fez parecido, sem a impiedade típica dos celestiais. Em vez de encomendar um big bang, parindo um universo à parte, abriu janelas, frestas, as famosas rachaduras por onde, como recita Leonard Cohen, entra a luz.
E houve luz. (Gênesis 1:3)
Mundos de Ursula K Le Guin
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Texto de Iana Villela.
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