Um homem chamado Whalum
“Humanité: a comunidade amada”, dirigido e produzido por Jim Hanon, é um documentário sobre uma iniciativa do prestigiado músico de jazz norte-americano Kirk Whalum, lançada em conjunto com seu álbum “Humanité”, mas que não se limita a um mero apêndice promocional do disco. Ao contrário, é um filme que pode ser apreciado nos seus próprios termos — tem coerência interna, ao mesmo tempo em que nos mostra o processo criativo de Whalum e expande o seu universo estético e artístico.
Em primeiro lugar, algumas palavras sobre o músico. Whalum é saxofonista e um dos compositores dos EUA de maior sucesso. Já saiu em uma turnê de mais de sete anos com Whitney Houston e, a propósito, é o responsável pelo solo de sax em “I Will Always Love You”, aquele cover famoso da música de Dolly Parton feito por Houston, até hoje o single de maior sucesso cantado por uma mulher.
Whalum também colabora regularmente com Luther Vandross na gravação de standards do R&B e de canções pop antigas. Além disso, não é demais lembrar que o sujeito é dono de pelo menos 12 nomeações ao Grammy.
Do Sul dos EUA para o mundo
Kirk Whalum faz parte de uma longa e rica tradição de músicos negros do Sul dos EUA. Nasceu em Memphis, Tennessee, e aprendeu a cantar no coral gospel da igreja de seu pai. O gosto pela música veio de sua avó, uma professora de piano. Havia ainda seus dois tios: Wendell Whalum e Hugh “Peanuts” Whalum, ambos músicos de jazz acostumados a excursionar pelo país de costa a costa.
Kirk Whalum se formou como músico e compositor a partir daquilo que uma vez definiu como os quatro elementos principais de sua criação: “O R&B de Memphis, o gospel, o rock e o jazz”. A interseção entre esses quatro elementos, Whalum declara sem pestanejar, sempre foi a melodia.
Música e teologia
Whalum teve duas formações: uma musical e outra teológica. Ou talvez seja ainda mais adequado dizer que, na verdade, ele teve apenas uma formação, de base musical-teológica. Sua visão de mundo, e mesmo sua sensibilidade artística, é muito particular. Ele enxerga a música em termos teológicos, quase como uma missão espiritual e existencial, e a religião em termos musicais. A palavra “harmonia”, nesse sentido, tem uma conotação musical, é claro, mas também de transcendência e de algo mais elevado.
“Humanité: a comunidade amada” é uma amostra interessante, complexa e bonita a respeito da mistura desses dois universos, musical e religioso, que coexistem na visão de mundo política e estética de Kirk Whalum. “Comunidade amada” não é um título aleatório, é uma referência a um conceito central ao pensamento político e à filosofia de Martin Luther King.
Afinal, o que é a “comunidade amada”?
Dr. King, pastor batista e uma das figuras mais importantes na luta pelos direitos civis da população afro-americana, se referiu à “comunidade amada” pelo menos em dois momentos importantes de sua trajetória.
Em primeiro lugar, quando argumentou, em um de seus primeiros artigos publicados, que as políticas de boicote à segregação racial nos ônibus em Montgomey tinham como objetivo “a reconciliação, a redenção e a criação de uma comunidade amada”.
Em segundo, quando, ao criar a Southern Christian Leadership Conference, escreveu que a sua missão era a de “promover e criar uma comunidade amada na América”, na qual a fraternidade fosse uma realidade.
A busca pelo sagrado na música negra
Em “Humanité: a comunidade amada” a câmera passeia ao redor do mundo ao demonstrar, sempre de forma criativa e sensível, que a experiência de Whalum ao lidar com todo o aparato institucional de opressão que lhe é familiar no Sul dos Estados Unidos, criado e sustentado pelo racismo, é comum à experiência de muitos indivíduos, no nível pessoal, assim como de muitas sociedades, em uma perspectiva coletiva e mais ampla.
A solução proposta por Whalum é a emancipação através da música e da arte. Apenas a capacidade criativa artística, individual e coletiva, é capaz de gerar um senso de conexão e de comunhão entre os povos.
A própria origem da música popular negra é o resultado de uma busca espiritual genuína pelo sagrado e pela transcendência. Para ele, essa dimensão espiritual, esse caráter sacro, jamais pode ser apartado artificialmente da música negra.
Contemplação, amor e crescimento espiritual
“Humanité: a comunidade amada” é um filme contemplativo, quase religioso, que enxerga a resposta para problemas externos (históricos, sociais e econômicos) a partir de uma mudança de comportamento pautada por uma mudança filosófica e existencial.
A proposta é uma inflexão mais coletiva e a busca de um sentido espiritual comunitário. Nesse aspecto a música é um instrumento capaz de mediar as relações entre homens e mulheres e talvez o principal antídoto diante das angústias existenciais modernas.
O principal argumento ao longo de “Humanité: a comunidade amada” é o de que, como Dr. King pregou durante toda a sua luta em prol dos direitos civis, não há fronteiras ou barreiras grandes demais capazes de separar a humanidade quando ela caminha com amor, desejo de cooperação e crescimento espiritual. Ou, como cantavam Marvin Gaye e Diana Ross, “Ain’t No Mountain High Enough”.
Através do filme de Jim Hanon, e das palavras de Kirk Whalum, nos lembramos do poder de cura e transformação da música e de como ela tem a capacidade de, a um só tempo, ser uma ferramenta de emancipação política, coesão social e crescimento espiritual. Não é pouco.
Postar um
comentário