Como os discos de vinil voltaram com tudo e se tornaram uma verdadeira religião?
“O mundo dos discos de vinil”, documentário de 2020 de Kevin Smokler e Christopher Boone, é uma carta de amor aos LPs mas, antes de mais nada, é uma carta de amor à capacidade humana de estabelecer conexões através do afeto e de um interesse comum.
Os diretores nos dão o contexto geral no qual podemos compreender o arco de ascensão, queda e, por fim, redenção dos discos de vinil.
Durante mais ou menos cinco décadas o formato gozou de hegemonia no mercado, até que essa hegemonia fosse enfim desafiada por um formato emergente e tecnologicamente revolucionário: o CD.
No entanto, para a surpresa de todos e ao contrário de qualquer previsão, na última década houve uma ressurgência avassaladora do vinil. De modo que, por exemplo, em 2021 foram vendidas 42 milhões de cópias ao redor do mundo, ultrapassando a venda de CDs pela primeira vez desde 1986.
Peregrinos em romaria
O documentário começa com uma longa fila de aficionados por discos de vinil, na frente da Mills Record Company, à espera da abertura da loja. Essas pessoas na fila são tratadas pelo filme como peregrinos em romaria religiosa. O contexto importa: o dia não é um dia como qualquer outro. É nada menos que o Record Store Day, um evento anual, todo mês de abril e sempre nas black fridays, em que celebra-se nos EUA a existência das lojas independentes de discos. Nesses dias longas filas são formadas por fãs obsessivos de música, sempre à espera de edições comemorativas e prensagens únicas de seus discos de vinil favoritos.
O vinil é plural
Um dos aspectos mais bonitos de “O mundo dos discos de vinil” é o fato de demonstrar que o público colecionador não está mais circunscrito ao estereótipo do nerd à moda do Comic Book Guy, de “Os Simpsons”. Isto é, não se trata aqui de um fandom formado majoritariamente por homens brancos e de meia idade. Nos últimos anos os colecionadores de discos de vinil tornaram-se um grupo muito mais inclusivo e diverso — tanto do ponto de vista racial, como com relação ao gênero, à orientação sexual e mesmo do ponto de vista etário e geracional.
Ao longo do filme somos apresentados a uma criança que ama David Bowie e que tem uma conexão emocional com artistas da época de seus pais; há mulheres negras millennials e uma moça de cabelo verde que se emociona com a ideia de que, mesmo depois que ela se for, a sua discoteca pessoal vai continuar por aqui, com as pessoas que a amam.
O vinil e a capacidade de comunhão humana
Em um dado momento há uma visita às instalações da Third Man Records, a gravadora independente do músico Jack White, um dos maiores entusiastas do LP e um dos expoentes de sua ressurgência como formato cultuado. Em momento algum White é entrevistado, o que é uma excelente opção narrativa, aliás, levando-se em consideração que se Kevin Smokler e Christopher Boone tratam a volta do vinil não tanto como um fenômeno sociológico e mais como um fenômeno de contornos quase religiosos, a omissão no filme de Jack White, um apóstolo dessa crença, dá destaque aos depoimentos de uma multidão de fiéis anônimos, com os quais nos identificamos e sentimos o seu amor pela música e pela vontade de se conectar através de um interesse amplo e comum.
Aliás, esse é um ponto importante a ser destacado em “O mundo dos discos de vinil”: era fácil, muito fácil, fazer um filme sobre como no capitalismo tardio o fetiche da mercadoria, ou melhor ainda, o fetiche da propriedade (de algo concreto, tangível) alcançou uma escala e proporção até então desconhecidas. No entanto, a ironia é a de que este não é um filme sobre uma coisa, o disco de vinil, mas sim sobre a capacidade humana de comunhão, de estabelecer conexões profundas a partir do afeto, de se encantar pela arte de homens e mulheres e, por fim, de amar. É feel good movie, mas também um documento humanista bonito e, no melhor dos sentidos, sentimental.
Isso fica claro no depoimento de Claudia Saenz, uma DJ que, incomodada com a quantidade reduzida de mulheres discotecando em bares e casas noturnas, criou o Chulita Vinyl Club, uma organização baseada em sororidade, no estreitamento de laços comunais entre mulheres de ascendência hispânica, no amor aos discos de vinil e à música como um todo.
Também é especial o registro em que, durante a Austin Record Convention, assistimos a um vendedor de discos (um homem negro, de meia idade) apresentar com paciência e cuidado um disco de jazz do trompetista Freddie Hubbard para um garoto jovem e branco. Durante aquela conversa de poucos minutos, e de uma audição em conjunto, observamos surgir uma conexão quase espiritual entre ambos.
Vinil: passado e presente
A direção de Kevin Smokler e Christopher Boone é segura e dona de um olhar humanista e delicado sobre o tema. Ambos conseguem um feito e tanto, que é escrever uma carta de amor ao disco de vinil sem que isso jamais soe como um romantismo antiquado, ou como uma idealização distorcida de um passado mítico, criado a partir de nostalgia pura e simples.
“O mundo dos discos de vinil” é, para todos os efeitos, um filme sobre o nosso presente. É um filme que enxerga uma linha de continuidade clara entre o ontem e o hoje. Até porque, como alguém já escreveu sabiamente uma vez, “O passado nunca está morto. Ele nem sequer passou”.
*Texto de Gabriel Trigueiro é doutor em História Comparada pela UFRJ, escreve semanalmente na newsletter Conforme Solicitado e colabora para Folha de São Paulo e O Globo.
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